Este é um texto que tem tudo para desagradar aos poucos que privam da minha companhia neste blog. E digo isso sem qualquer pretensão à polêmica, uma vez que percebo este blog muito mais como um registro do que uma interlocução social, dada a escassa atividade aqui realizada. Assim, aqui vou agora desagradar feministas, religiosos, liberais e alguns setores das esquerdas.
Toda essa gritaria histérica sobre os Estudos de Gênero, promovida pelos setores ultraconservadores e encampada por uma parte da sociedade que não tem o acesso necessário à informação para poder avaliar seu sentido, me levou a pensar sobre algumas questões bem pontuais do ser mulher. Foram também a releitura de Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade da filósofa Judith Butler, bem como o debate constante com a minha filha sobre diversos aspectos da Teoria Queer e outras tantas questões da moderna percepção da “mulherice”, que me levaram a querer pontificar esse tema. Muito mais, é evidente, do ponto de vista do historiador (como sempre faço) já que careço das credenciais e da experiência para discutir o tema em termos filosóficos.
Nesse sentido, não vou entrar nos aspectos filosóficos do ser, mas restringir-me a alguns aspectos do devir histórico feminino. Selecionar alguns conhecimentos prosaicos e ver como a percepção sobre eles foi mudando de acordo com a temporalidade e a historicidade dos sujeitos. E, como este é o meu blog, e não uma revista científica, pretendo manter o texto inteligível e leve o suficiente para permitir a leitura dos leigos.
A divisão de trabalhos e tarefas pode ser considerada uma das marcas da organização social em comunidades humanas desde o paleolítico. Não admira, nesse sentido, que Karl Marx a escolhesse como chave para o entendimento da evolução histórica das sociedades, ao criar o conceito de modo de produção. Para sobreviver, desde sempre, é necessário organizar quem vai caçar, quem vai colher, quem vai tecer e quem vai nos proteger dos predadores.
Sociedades assim organizadas, no início, não dividiam as tarefas de acordo com o gênero porque não se entendiam como homens e mulheres, havia uma hierarquia que se baseava na idade e na experiência, além da força e da destreza, que permitia que algumas mulheres caçassem lado a lado com os homens. A lenta transformação que possibilitou a supremacia social masculina nas regiões do Oriente, em que a civilização em termos históricos surgiu, pode ser entendida pensando-se a organização das religiões monoteístas, dos conceitos de propriedade privada e de herança, bem como o estabelecimento das monarquias. Nos setores dominantes dessas sociedades, a necessidade de manter o controle da pureza da descendência, tanto aliado ao exercício do poder quanto à transmissão da propriedade, acabou gerando formas de confinamento doméstico e criando modelos de sociabilidade em que essas tarefas passaram a ser vistas como femininas.
Simplista? Não necessariamente, afinal, o parágrafo acima apenas resume radicalmente vários séculos de transformações sociais e culturais. Não é uma análise em profundidade e sim um ponto de partida para pensar sobre tarefas e identidades.
A afirmação de Simone de Beauvoir de que não se nasce mulher, torna-se, que já ninguém questiona academicamente, diz respeito exatamente a esse aprender de tarefas e comportamentos ligados histórica e socialmente ao feminino. Para entender, de um ponto de vista marxista, como esses elementos externos acabaram ligados intrinsecamente à identidade feminina é necessário pensar exatamente como a divisão de trabalhos foi sendo modificada ao migrar de um modo de produção a outro e como as mulheres acabaram perdendo o protagonismo nos mundos do trabalho à medida que as castas e as classes foram definindo-se. É uma tarefa complexa e nada inédita, já existe uma considerável produção acadêmica sobre esses temas, basta pesquisar, o que eu pretendo aqui é refletir um pouco sobre como esses processos nos impactam atualmente.
Na Europa pré Revolução Industrial (e em muitos locais no Terceiro Mundo até hoje) às mulheres pobres, camponesas ou citadinas, estavam reservadas tarefas pesadas e complexas de manutenção das condições de sobrevivência da família. Fabricação de sabão caseiro, agricultura de subsistência, fiar, tecer e costurar, dominar um repertório complexo de plantas e sementes usadas tanto na alimentação quanto na medicina caseira, ser as guardiãs dos rituais de passagem do nascimento à morte, ainda quando também acabassem sendo as provedoras do fogo (lar) na ausência ou morte do homem. Seguindo uma hierarquia que reproduzia os modelos primitivos de idade e experiência, essas mulheres pobres eram as guardiãs do que entendemos por cultura no sentido antropológico.
A industrialização ocidental redefiniu a maneira de encarar o trabalho e criou a hierarquia produtiva da remuneração. Embora miseravelmente pagos, homens eram valorizados acima das mulheres nesse novo modelo de produção e as tarefas domésticas (por não receberem qualquer remuneração financeira) passaram a ser desprezadas e relegadas ao feminino em um sentido pejorativo. Mesmo quando a exploração descontrolada nas tecelagens, minas de carvão e outros meios de produção obrigou ao trabalho insano de mulheres e crianças em jornadas de até dezesseis horas diárias para sobreviver, a existência de um serviço doméstico porcamente remunerado prestado às classes superiores em alguns locais (e a escravidão em outros) rebaixaram ainda mais a hierarquia das tarefas consideradas femininas.
E, mesmo assim, ao longo do século XX, em boa parte dos lares das classes médias ocidentais, a educação das meninas para uma vida de esposas, mães e donas-de-casa era tido como a normalidade social. Entre as mulheres pobres, o imperativo da sobrevivência sobrepunha as mais diversas formas de trabalho remunerado e não remunerado, mas entre os setores médios e altos da população ocidental o ideal de domesticidade implicava no recolhimento e nas tarefas manuais consideradas femininas. A necessidade de quebrar esse modelo impulsionou a organização das primeiras feministas ocidentais, oriundas desses setores médios e altos da população e com reivindicações bem diferenciadas daquelas das mulheres pobres e trabalhadoras.
Essencialmente diferentes também da primeira geração de mulheres revolucionárias na Rússia. No período soviético leninista, as mulheres tiveram uma liberdade de organização e protagonismo até então inédita nesse país, mas posteriormente (mesmo com sua participação massiva durante os combates na Segunda Guerra Mundial) sua autonomia acabou solapada durante o stalinismo. E, embora desempenhando cargas de trabalho similares às masculinas, foi o ressurgimento das restrições de cunho moral e comportamental que reduziu o protagonismo das mulheres soviéticas no período pós-leninista.
As ativistas ocidentais reivindicavam em um primeiro momento o direito ao voto (sufragistas) e posteriormente a liberdade para trabalhar (dentro dos setores médios e nos países em que o pai ou o marido podiam legalmente impedi-las) e finalmente a equiparação salarial com os trabalhadores masculinos (feministas). Sua lutas eram pontuais e classistas, não podendo ser entendidas como aspirações da totalidade das mulheres, uma vez que ignoravam as necessidades das trabalhadoras pobres, das camponesas e das mulheres não brancas. Ignoravam também as especificidades culturais ligadas à divisão classista da sociedade nos significados de ser mulher.
E quem me segue aqui há mais de ano sabe da minha implicância com esse tipo de militância. Passei mais de uma década me considerando pós-feminista, antes de descobrir que a minha defesa da incorporação das lutas classistas, étnicas e raciais se chamava interseccionalidade e tinha seu lugar no feminismo do século XXI. Devo essa percepção à minha filha, que já conhecia e participava desses debates antes de toda essa celeuma em torno de Judith Butler e da falsa interpretação das questões do gênero pelos conservadores.
A desvalorização dos saberes culturais femininos dentro dos modelos de produção e exploração capitalistas foi encampada (inadvertidamente) por diversos setores do feminismo devido a esse viés classista. A construção da percepção de uma eventual libertação mediante o abandono da domesticidade demonizou habilidades ancestrais ligadas aos trabalhos manuais e às memórias étnicas e culturais. Rendeiras, bordadeiras, tecelãs e trabalhadoras de todos os tipos de agulhas passaram a ser vistas como artesãs (no afã de monetizar todas as formas de trabalho) e esses saberes, que antes pertenciam a uma boa parte das mulheres, deixaram o cotidiano para radicar-se na periferia dos mundos do trabalho.
Do mesmo modo as sociedades médicas do século XIX perseguiram e baniram as remanescentes das curandeiras, herboristas e benzedeiras (que já vinham sendo demonizadas desde as fogueiras das bruxas), para poder promover a imagem do médico de família, que cobrava por consulta. Do mesmo modo os saberes culinários têm sido encampados na profissionalização dos ditos cheffs por homens excepcionalmente bem remunerados para cozinhar como se isso fosse uma grande coisa. Existe uma espécie de gentrificação profissional quando um saber que faz parte das chamadas atribuições femininas passa a ser desempenhado em termos profissionais por homens e seus salários relegam ainda mais a autoimagem feminina a um limbo marginal e desacreditado.
O estigma da submissão acompanha (nos meios politizados) qualquer mulher que sinta prazer nos trabalhos de agulha ou na culinária não remunerada. Da mesma maneira, nos meios populares, homens que façam trabalhos manuais considerados femininos como forma de lazer e sem remuneração são acerbamente criticados e tem inclusive sua sexualidade questionada. Nos modelos de produção e exploração capitalista, quem não “gera valor” (expressão odiosa) com seu trabalho, não tem sua identidade social reconhecida.
Se os meus leitores estão habituados às “tretas” das redes sociais, talvez se lembrem do menino crocheteiro, que teve sua página do Facebook denunciada e eliminada por uma dessas patrulhas moralistas. A denúncia afirmava que, sendo menor de idade, ele estava violando as normas do próprio Facebook ao manter uma página pública, mas o que estava por trás da sanha dos binários era o fato de que eles entendiam o crochê como uma atividade feminina e não conseguiam aceitar a felicidade do menino tecendo e ensinando a tecer. Afortunadamente, o menino refez sua página e vai de vento em popa, feliz com suas agulhas e conta com todo o meu apoio, por pouco que isso signifique.
As técnicas ligadas ao crochê são percebidas, ainda hoje, como algo feminino. Entretanto, entre as centenas de mulheres com quem tive que conviver em toda a minha vida, posso citar poucas que dominam esse tipo de saber sem ser profissionais. E não é um saber inútil, afinal, além de um excelente lazer é um meio de não depender da indústria têxtil, que explora sem remissão seus trabalhadores desde sempre.
Os saberes femininos ao longo da História permitiram a transmissão de meios de sobrevivência, de sociabilidade e de autonomia. A organização da divisão de trabalho capitalista precarizou os ambientes de transmissão desses saberes e usurpou o modo de disseminação do conhecimento mediante a manipulação da remuneração. Os diversos setores do feminismo que não conseguiram perceber esses conhecimentos como instrumentos de poder na luta pela sobrevivência ajudaram a precarizar ainda mais a condição feminina das mulheres pobres.
Isso significa que eu quero que todas nós aprendamos a bordar, tecer e cozinhar? Claro que não, do mesmo modo que também não quero correr pelada pelos bosques homenageando a Lua e nem quero estudar medicina ou engenharia. O que defendo aqui é que precisamos entender como se organiza a sociedade que nos alija de uma justa remuneração ao mesmo tempo em que nos rouba saberes ancestrais, enquanto perdemos tempo discutindo o que é ou o que não é ser mulher.
Nesse sentido, adorei o pensamento de Judith Butler exatamente porque ela entende que o feminino é uma série de aprendizados performativos e não uma condição inerente às portadoras de vaginas e úteros. Eu quero que ser mulher seja o que eu quiser ser, o que você quiser e o que todas nós imaginarmos, sem ser mediado por padres, pastores ou políticos. E que isso inclua desde uma camponesa do Nepal até uma acadêmica de Oxford, incluindo as mulheres trans e sem que modelos de feminilidade X ou Y sejam impostos de cima para baixo por quem quer que seja.
Isso é tão difícil de entender?