O ATO DE PENSAR NÃO PODE SER UMA ACEITAÇÃO MECÂNICA

Devanarse los sesos” é uma expressão que era usada na minha infância em Montevideo e que significava algo como pensar furiosamente, colocar os miolos para funcionar. “Sesos” são exatamente os miolos, o cérebro em si, o verbo “devanar” já é outra história.

Provavelmente vocês que nasceram na era da tecnologia jamais viram uma “devanadora”, que era um aparelho comum em qualquer indústria têxtil da América Latina até os anos 70, depois já não sei. Era composto por uma estrutura circular, muitas vezes de madeira e podia ser acionado a pedal ou ser automatizado. A tecelã pegava a “madeja”, um tipo de novelo grande e bruto e encaixava na estrutura e acionava o pedal ou o motor e passava a lã ou a linha para os cones, que seriam depois utilizados nas máquinas de tricô (no âmbito doméstico) ou nas máquinas têxteis na fábrica.

Era um trabalho mecânico e monótono como soem ser todos aqueles ligados a esse tipo de indústria. No início dos anos 80, já no Brasil, quando trabalhei na extinta Indústria de Meias Aço S.A., havia máquinas grandes e totalmente automatizadas, que passavam o fio para os cones em uma velocidade industrial e podiam ser controladas por um único operário sem grande envolvimento físico. Mas a minha lembrança pessoal dos “devanadoras” vem de ver minha mãe trabalhando em casa, em um quartinho perto da escada (entre a cozinha e a sala), onde ficavam a máquina de tricô e a máquina de cerzir meias, outra máquina que já nem existe mais nas fábricas.

Devanarse los sesos”, então, é uma expressão que vai muito além de pensar  furiosamente e cada vez mais rápido (de acordo com a habilidade da tecelã), implica também em seguir o fio de uma meada até o seu fim, pegar uma massa bruta de informações e transformar em uma série de “cones” trabalháveis. Significa, ao menos para mim, que consigo decifrar a analogia implícita em tal expressão idiomática, pensar tão exaustivamente como se fosse um trabalho braçal até conseguir destrinchar as meadas da realidade aparente e daquelas que estão escondidas.

Esse preâmbulo quase poético é para dizer que passamos o final de semana pensando e analisando furiosamente os acontecimentos da quinta de da sexta-feira passadas (04 e 05/03/2016). Procurando sentidos múltiplos em cada notícia veiculada e buscando devassar os interesses de cada interlocutor, de cada personagem, de cada instituição e tentando definir seus papéis na esparrela criada pela dita Operação Lava Jato.

Não vou ditar aqui uma análise ou definir responsabilidades, meio mundo na imprensa hegemônica e na imprensa independente já está fazendo isso. Não me cabe dizer quem é inocente, quem é culpado, quem escarrou na Constituição, quem foi arrogante e desnecessariamente autoritário, ou quais os custos que toda essa barbaridade vai ocasionar em nossa frágil e incipiente estrutura democrática.

Meu papel, enquanto professora, é fazer um chamado ao pensamento. Há muita opinião circulando, algumas são extremamente analíticas e pertinentes e outras não passam de um amontoado de preconceitos travestidos de fatos. É importante que você que me lê se dê ao trabalho de realizar esse processo básico de desconstrução das notícias. E para isso proponho algumas perguntas que você deve fazer sempre que se deparar com qualquer notícia que circule em qualquer mídia:

– Quem está divulgando a notícia é um jornalista autônomo e sério ou é alguém que depende do patrão para sobreviver? Isso faz uma diferença medonha no modo como a notícia pode ser veiculada e tratada.

– O veículo (emissora, canal, jornal ou revista) possui credibilidade dentro de qual setor demográfico ou político de nossa sociedade? Pensar quem fala e para qual público esse veículo é dirigido é igualmente importante.

– Os fatos divulgados na notícia são verificáveis ou apenas boatos?

– As pessoas acusadas ou defendidas na matéria são retratadas de modo acurado ou apenas tem sua realidade manipulada para corresponder a estereótipos de fácil assimilação por quem tem preguiça de pensar? Oposições primárias como “mocinhoXbandido”, “bemXmal”, “corruptoXhonesto” são estúpidas e mascaram muito mais que a realidade aparente, mascaram essencialmente a condição humana cheia de contradições e nuances.

– O cenário retratado pela imprensa condiz com a realidade da sua vida? Ou você está comprando brigas e crises que poderiam ser dimensionadas de maneira totalmente diferente, caso você não passasse o tempo aceitando bovinamente as análises e opiniões de determinados “jornalistas”?

E essas perguntas são apenas para começar, uma vez que você se acostumar a questionar a realidade outras vão surgir. Vão ser perguntas suas, questionamentos pessoais que sua mente vai desenvolver ao relacionar-se com a realidade aparente e aquelas outras realidades que se escondem em cada aspecto das nossas vidas.

Em um momento em que a sociedade brasileira está em um ponto de tensão inaceitável, tudo o que peço é que você pense. Somente o pensamento crítico e o diálogo vão nos afastar deste abismo. Soluções econômicas milagrosas não vão acontecer se estivermos entregues ao ódio e á hostilidade social. Pense, ouça, dialogue.  Vamos “devanar nuestros sesos” até que toda essa meada esteja devidamente fiada e distribuída nos cones da racionalidade e da crítica. A civilização agradece e eu também.