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Interesses Temáticos 4: Falta de braços, branqueamento e luta de classes

FALTA DE BRAÇOS, BRANQUEAMENTO E LUTA DE CLASSES

A construção de um mercado de trabalho livre no Brasil enfrentou o paradoxo de uma classe proprietária que aspirava a manter mecanismos de controle social com fortes vínculos escravocratas, enquanto defendia a necessidade de modernização. Que absorvia as “novidades francesas” e “modernidades estadunidenses” e queria se sentir menos inferior diante das teorias “científicas” que nos condenavam à decadência moral por sermos uma sociedade mestiça. Que abominava ser vista como “igual” aos indígenas e africanos (escravos ou libertos), na iminência de que uma modernização necessária à economia trouxesse consigo uma “democratização” de convívio e de pertencimento.

Nesse sentido, a necessidade de “modernizar” a lavoura passava por repensar o tipo de trabalhador requerido. E não porque os fazendeiros tivessem qualquer laivo abolicionista, mas porque viam na progressiva ação legislativa (de iniciativa imperial) algo irreversível em direção ao fim nominal da escravidão. E precisavam pensar em como adaptar-se a essa nova realidade, mantendo seus “poderes” econômicos e sociais intactos tanto quanto possível.

E aqui precisamos pensar em duas “teorias” bastante difundidas à época, em virtude do eurocentrismo e usadas frequentemente para justificar o neocolonialismo decorrente da expansão imperialista do século XIX. A “teoria racial” e a “teoria dos climas” associavam a supremacia europeia à sua população massivamente branca e ao clima temperado e/ou frio, fatores que teriam produzido as condições para um “progresso” ausente em latitudes quentes e de população não-branca. E vale a pena nos determos um pouco e analisa-las porque era à luz dessas ideias que a classe dominante brasileira se via nessa transição do Império para a República.

A “teoria dos climas” enfeixava uma série de hipóteses levantadas de Aristóteles a Rousseau, passando pelo geógrafo medieval Ibn Khaldoun, sobre a influência do ambiente nos seres humanos. E, na leitura preconizada no século XIX, afirmava que os povos de climas quentes e temperados eram mais indolentes porque a natureza lhes oferecia maior variedade de alimento e condições mais amenas de vida; ao passo que os povos de climas mais gelados e inclementes desenvolviam qualidades positivas por precisar sobreviver na adversidade e na escassez. Obviamente que essa “teoria” ignorava deliberadamente todos os impérios e culturas sofisticadas da antiguidade, localizados na África e na Ásia, bem como as civilizações pré-colombianas da América, para estabelecer o “berço da Civilização” no eixo Grécia-Roma.

Já a “teoria das raças” hierarquizava os seres humanos em graus de superioridade e inferioridade (usando erroneamente as premissas de Darwin sobre a evolução das espécies), colocando os europeus no topo e inferiorizando todo o restante da Humanidade. E alegava-se, que a mestiçagem abastardava a “raça superior” sem trazer grandes vantagens evolutivas à “raça inferior”, bem como que os climas muito quentes levavam os europeus à decadência moral, não só pela disponibilidade sexual das mulheres não-brancas, mas também porque as condições lhes poupavam o trabalho pesado que “constrói o caráter”. Seria mera coincidência que a junção dessas duas teorias serviu de justificativa para a brutalidade do colonialismo europeu e do imperialismo do século XIX?

No caso do Brasil, a presença do cônsul francês Joseph Arthur de Gobineau, autor do Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas (1855), que aqui residiu apenas dois anos (1869-70), trouxe esse mal-estar, uma vez que ele detestou o país e profetizou-lhe o pior destino, devido à presença negra e à miscigenação. Em 1874, Gobineau lançou seus apontamentos sobre o país no livro L´Emigration au Brésil, que defendia a necessidade de uma massiva imigração europeia para “branquear” a população e impedir sua decadência física e moral. Defensor da eugenia, Gobineau chegou a ser chamado de “o inimigo cordial do Brasil” por sua amizade com o imperador D. Pedro II, que perdurou epistolarmente, mesmo depois da partida do diplomata e mesmo não havendo concordância entre os dois sobre tais assuntos.

Gobineau não foi o único viajante europeu a chamar a atenção para a sociedade brasileira e suas particularidades, decorrentes da presença massiva dos escravizados no meio urbano e da miscigenação quatrocentona na classe dos terratenentes. Ao longo do século XIX, o Brasil atraiu naturalistas, aventureiros, viajantes entediados, curiosos e diletantes, que relataram suas impressões sobre o império gigante nos trópicos para audiências e leitores ávidos pelo exótico. Em meio às narrativas sobre a natureza exuberante e extraordinária, os brasileiros apareciam como intrusos inferiores no paraíso, aos olhos dos europeus.

E muitos se viam assim. E queriam alterar o destino decadente que a “ciência” europeia lhes profetizava, mesmo que para isso precisassem “inundar” o país de imigrantes europeus. E foi isso mesmo que fizeram.

Durante anos a historiografia brasileira tentou entender as diferenças da expansão do café entre o Vale do Paraíba e o Oeste Histórico Paulista. A rápida decadência do Vale do Paraíba permanecia inexplicável e uma das interpretações que ganhou força foi a da existência de uma diferença na mentalidade entre os fazendeiros das duas regiões. Acreditava-se que os fazendeiros do Oeste Histórico Paulista seriam muito mais “modernos”, e por isso teriam prosperado, ao passo que os do Vale do Paraíba permaneceriam aferrados a modos de exploração mais tradicionais.

Para aprofundar-se e tentar entender essa interpretação, Peter L. Eisenberg estudou a mentalidade dos fazendeiros nos congressos agrícolas de 1878, ocorridos em Rio de Janeiro e Recife. Esses congressos estabeleciam uma série de quesitos para discussão sobre as questões que mais preocupavam o gabinete imperial e também sobre as urgências trazidas pelos próprios fazendeiros. E os anais decorrentes desses congressos deixavam a nu as opiniões de vários titulares do Império sobre as questões da mão de obra.

Entre 1850 e 1871, houve a abolição “definitiva” do tráfico negreiro e a libertação do ventre das escravizadas, bem como a regulamentação de todos os tipos já existentes de alforrias. E essas mudanças ocorreram muito mais devido às lutas sociais que já estavam em andamento, do que a uma intervenção voluntariosa da família imperial (o que não nos impede de reconhecer que havia um comprometimento abolicionista entre os membros da dinastia). Os fazendeiros tinham razões de sobra para especular sobre o que aconteceria quando a escravidão fosse extinta.

Eisenberg constatou que a preocupação com a “falta de braços para a lavoura”, as divergências sobre a possibilidade de aproveitamento do trabalhador livre nacional e as dúvidas sobre que tipo de imigração seria necessário promover, ocasionaram os debates mais acalorados nos congressos agrícolas. Da resposta a essas questões poderia depender todo o futuro civilizatório do Brasil e sua inserção no rol das nações modernas. Já para essa altura, uma boa parte desses fazendeiros do Oeste Paulista havia fundado o Partido Republicano e, mesmo com protagonismo nos gabinetes imperiais, só o que “segurava” a monarquia era a própria inércia das instituições, uma vez que o discurso constante era associar o atraso do país também à existência da monarquia.

As ideias racistas de eugenia começavam a enraizar-se em setores dessa elite que mandava seus filhos a estudar na Europa e consumia revistas literárias e romances franceses. Se uma parte dos fazendeiros (principalmente da Zona da Mata) considerava seriamente o uso do trabalhador livre nacional devido ao excesso de oferta decorrente da presença dos flagelados da grande seca no fim dos anos 1870, outra parte defendia que os ingênuos (nascidos livres de mães escravizadas) deveriam ser educados para trabalhar na lavoura e outra parte ainda era partidária da imigração massiva, inclusive com o intuito de “embranquecer” o país. E como eram projetos regionalizados, isso gerou diferenças nos perfis populacionais e nas soluções da mão de obra ao longo do Brasil.

É nas divergências de opiniões sobre um projeto de imigração que se encontram as evidências mais nítidas do alcance das teorias racistas de eugenia. São poucos os que defendem algum tipo de imigração que não provenha da Europa, e a repugnância demonstrada diante da possibilidade de “importação” de chineses ou indianos (cules) já antecipa a hostilidade e o racismo sofridos pela primeira geração de imigrantes japoneses no século XX. Mesmo entre aqueles que defendiam a imigração europeia, uma boa parte preferia os habitantes do Norte aos da orla mediterrânica.

Sobre o trabalhador livre pobre nacional sobram preconceitos. Indolente, preguiçoso, ladrão e bêbado, enfim, só servindo para jagunço ou capanga, mas incapaz de trabalhar duro como a lavoura exigia. Os fazendeiros do Norte e Nordeste, entretanto, preferem aproveitá-lo por considerar que os europeus não se adaptarão às condições climáticas de suas regiões.

Os libertos e os que serão libertos com o fim iminente da escravidão, pouco ou nada são cogitados. Ao contrário dos ingênuos, que entram na conta porque os primeiros a nascerem já estão prestes a completar oito anos e espera-se que os fazendeiros os repassem ao governo em troca da indenização de seiscentos mil réis prevista na lei 2040, de 28 de setembro de 1871. E a proposta é que o governo os eduque para trabalhar na lavoura e depois os devolva devidamente disciplinados.

A título de curiosidade, não houve uma grande procura por essas indenizações. Aos poucos, os ingênuos foram absorvidos nos postos de trabalho e, junto aos órfãos, foram explorados mediante relações tutelares até a maioridade. As escolas agrícolas planejadas nos congressos foram poucas e raras.

O próprio imperador se interessava por promover a imigração, financiando colônias no sul do país e permitindo que, ao longo da década de 1880, a província de São Paulo iniciasse um projeto de imigração massivo, que trouxe da Itália um tal contingente, que mudou radicalmente seu perfil populacional. Até às vésperas da Segunda Grande Guerra, os italianos já representavam algo em torno de 9% do total de habitantes da província de São Paulo, isso sem contar os portugueses que nunca pararam de chegar e outras nacionalidades e etnias, que relegaram os libertos às periferias e aos trabalhos mais insalubres e indesejados. E “branquearam” as principais cidades paulistas, onde outrora a presença escravizada era massiva.

Há notícias que, após a Abolição, um movimento de refluxo ocorreu quando muitos libertos voltaram às províncias onde se encontravam suas famílias de quem foram separados devido ao tráfico interno. Onde ficaram, foram sendo confinados em bairros cada vez mais distantes e reduzidos aos empregos mais precários, invisibilizados por uma sociedade que se queria cada vez mais europeizada. E a ideologia por trás da miscigenação ainda procurava torna-los mais difusos e invisíveis, no século XX.

Importante frisar que os italianos não foram recebidos com flores. Foram tratados como europeus de segunda classe e explorados tanto pelos fazendeiros quanto pelos industriais, alguns destes seus patrícios, inclusive. Considerados indisciplinados e ladrões, levaram ao menos duas gerações para ser aceitos e tornar-se parte da identidade paulista, muitas vezes obliterando a exploração original construindo memórias de sucesso e adaptação.

Os japoneses, que começaram a chegar em 1908, sofreram preconceitos e maus tratos, perseguições e retaliações durante a Segunda Guerra. No interior paulista ainda eram mal vistos nos anos 1970, quando o advento dos vestibulares nacionais construiu sua reputação de estudiosos e trabalhadores. E constituem um dos poucos casos de reversão do estereótipo negativo em uma população não branca no Brasil.

As teorias racistas do século XIX fincaram raízes no imaginário das elites brasileiras. E cavaram abismos sociais, que se prolongam até hoje, na forma de um racismo estrutural que exclui e invisibiliza as populações descendentes dos africanos escravizados e qualquer imigrante não branco da América Latina e da África. Para as classes dominantes, os trabalhadores sempre serão inadequados ao seu projeto eugenista, mesmo quando descendentes de europeus.

Atualmente, a reboque da onda reacionária que varre o planeta, a cegueira ideológica que condena o uso das teorias marxistas de análise histórica e sociológica tem promovido pseudo-intelectuais que ressuscitam a “teoria dos climas” e a “teoria das raças”, com roupagens mais “modernas”. A própria falácia da “democracia racial” vem sendo recuperada para se contrapor às leituras críticas da sociedade promovidas nas últimas décadas nos meios universitários e intelectuais. A luta de classes está cada vez mais presente nessa “guerra de narrativas” em que os setores conservadores recorrem a teorias capengas e ultrapassadas para tentar silenciar a construção de uma teoria crítica sobre a formação do Brasil.

BIBLIOGRAFIA

ALONSO, Angela.  Flores, votos e balas: O movimento abolicionista brasileiro (1868-88).  São Paulo, Companhia das Letras, 2015.

AZEVEDO, Célia M. M. de.  Onda negra, medo branco: O negro no imaginário das elites – Século XIX.  Rio de Janeiro, Paz e Terra. 1987.

EISENBERG, Peter L.  Homens esquecidos: Escravos e trabalhadores livres no Brasil – séc. XVIII e XIX.  Campinas, Editora da UNICAMP, 1989.

RAEDERS, Georges.  O inimigo cordial do Brasil: O Conde de Gobineau no Brasil – com documentos inéditos.  Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988.

SCHWARCZ, Lília Moritz.  O espetáculo das raças: Cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 1870-1930.  São Paulo, Companhia das Letras, 1993.