CINQUENTA ANOS NO BRASIL

Quando eu tinha uns oito anos, acreditava que no ano 2000 haveria carros voadores, que moraríamos na Lua e que a Revolução teria chegado. Mas, ao mesmo tempo, havia feito as contas de que seria uma mulher de 36 anos e me imaginava levemente gorducha, solteirona, vestindo uma camisa branca pregueada e uma saia de tweed de padrão difuso, sendo que pensava trabalhar em algum escritório ou ser professora (o sonho de ser aeromoça fora estraçalhado pela professora Mabel quando eu tinha seis anos, alegando que as aeromoças não podiam ser baixinhas). Nada disso aconteceu da maneira como eu imaginava e algumas dessas expectativas nem chegaram a acontecer (ainda bem), mas aqui vai mais um texto autorreflexivo com direito a inventário de vida.

No início dos anos ’70 não existiam celulares (nem computadores pessoais, internet ou qualquer dos recursos a que estamos acostumados hoje) e a maior parte da população da América Latina nem sequer tinha acesso às linhas fixas, sendo obrigada a usar os telefones públicos ou as centrais com telefonistas (no caso de querer fazer um interurbano ou uma ligação internacional, ambas opções caríssimas). O cinema e a televisão estavam lotados de ficção científica, em parte devido ao pouso dos estadunidenses na Lua, que nos remetiam a naves espaciais, viagens pelo Universo, alienígenas e “babados afins”. Quase sempre filmes de aventuras com uma fórmula similar de ação aos de piratas ou faroestes, mas, às vezes, surgiam filmes de qualidade bem maior, distopias que refletiam sobre a condição humana, a guerra e as mazelas do nosso próprio planeta, usando a ficção científica como veículo narrativo. De qualquer modo, o ano 2000 nos parecia um marco plausível de futuro à velocidade dos avanços científicos da época.

E é por isso que quando a minha imaginação divagava, esse era um dos marcos principais, mas havia outros. A ideia da Revolução iminente não derivava apenas dos comentários do meu Pai sempre quando eu deixava comida no prato, havia Cuba e Fidel e as guerrilhas em nosso continente. E Fidel era um gigante, seus discursos maravilhosos são uma lembrança que ainda me é muito cara, mas também havia o Che e Camilo que, mesmo após a morte, eram gigantescas figuras em meu imaginário. E havia o meu primo Adolfo (que em família era conhecido como Cholo), um tupamaro cuja memória já homenageei aqui neste blog.

A perspectiva de ser solteirona estava ligada a diversos motivos. Desde a realidade da escola (em que os meninos riam de mim), passando pelo grande número de casais infelizes e hostis ao meu redor, até chegar à sedução que a segunda onda feminista proporcionava no cinema e na televisão, mostrando-nos mulheres independentes e felizes sozinhas. Na minha cabeça, a solidão e o estigma não entravam na conta (lembrem-se que eu era criança) porque eu só pensava na independência e na aventura.

Por aquele então, o Brasil nem fazia parte do meu entendimento. Era um país gigantesco ao nosso lado, de onde vinha um casal de irmãos que estudava em nossa escola (nem me lembro os nomes), cuja mãe inaugurou o costume de levar bolo para os colegas no dia do aniversário. E ela era simpática, fazia uns bolos maravilhosos, tentando encontrar calor humano para seus filhos em um país muito mais bruto e tosco no trato social.

E um ano depois, quando eu estava a meio caminho entre os nove e os dez anos, estava desembarcando no Brasil, sabendo que nunca mais voltaria a meu país de origem e que só veria minha família de tempos em tempos, abandonando tudo o que conhecia. A essa altura, mesmo que não pudesse verbalizar, eu sabia que a Direita havia ganhado, que não haveria Revolução, que eu nunca poderia comentar fora de casa que éramos comunistas e ateus e que deveria tomar um cuidado imenso com os agentes da repressão e os espiões na escola. Vesti uma personagem paranoica, que passava noites sem dormir ao menor deslize verbal e que contemplava impotente a infelicidade dos meus pais diante da solidão e do tanto de percalços que a vida nos dava.

Às vezes me pergunto como teria sido se tivesse tido uma infância “normal” e preservada. Mas logo descarto esses pensamentos porque, afinal, vista de perto, nenhuma infância é feliz ou normal. Não se o normal for a fantasia da indústria do entretenimento.

Foi uma grande aventura, que não teve nada de emocionante. Medo, expectativa, depressão, trabalhos extenuantes e uma solidão, que somente os que já passaram por isso entendem, foram o quinhão dos meus pais, nas duas primeiras décadas aqui. O meu e da minha irmã, somente cada uma de nós sabe e nunca falamos sobre isso. Depois, isso tudo foi mudando para melhor.

Eventualmente, as coisas entraram nos eixos. E eu trabalhei em escritórios de fábricas, lugares horrendos e melancólicos, que nada tinham da vida de Mary Tyler Moore. E que, no limite, tudo o que me legaram foi uma desconfiança extrema em relação a ambientes de trabalho, um colapso nervoso e a certeza de que aquele não era meu lugar.

Procurando meu lugar decidi voltar a estudar e foi aí que a minha vida realmente passou a ser minha. Tudo o que tenho de bom, hoje, inclusive a capacidade de apreciar a vida, atribuo à transformação que o Ensino Superior operou em minhas expectativas, em meu entendimento do mundo e em minha personalidade. Sem essa experiência, a frustração desses trabalhos limitantes talvez me levasse a abandonar o Comunismo e me transformasse em minion, quem sabe.

Um aparte: é por causa dessa transformação que vivi e que ainda vivo, que me ressinto da demagogia de certos esquerdinhas que argumentam que não adianta abrir escolas e faculdades se não existe emprego. Eu mesma nunca tive a recompensa monetária por todos os meus anos de estudo e amargo a possibilidade de chegar à velhice com uma aposentadoria pífia. Entretanto, o crescimento humano que o estudo me proporcionou é a diferença entre reproduzir uma trajetória fadada à infelicidade e frustração e ter uma vida de verdade. Cada um se descobre e cresce de maneira diferente e para mim foi o estudo que fez essa ponte, por isso, acredito firmemente que cada escola ou universidade que o Lula inaugura é a esperança de redenção para outras pessoas como eu.

Hoje, às 21:00h, se completam cinquenta anos de minha chegada ao Brasil. Tenho muito o que comemorar, mesmo que meus pais já não estejam mais conosco, que minha família no Uruguay tenha ido minguando com o passar do tempo e que eu tenha perdido a intimidade com a nova geração. Minha irmã e eu temos nossas próprias famílias e este laço de cumplicidade que só uma experiência impactante como essa proporciona.

Não creio que algum dia venha a me sentir brasileira. Esse tipo de coisa não existe, é pura demagogia, mas aprendi a apreciar a diversidade e a riqueza emocional da vida aqui. E isso me basta para defender a escolha dos meus pais.

Sou grata ao Brasil e aos brasileiros pelo acolhimento. Afinal, dos fugitivos confederados aos japoneses do Kasato Maru, passando pelas levas e levas de camponeses pobres do sul da Europa, o país sempre recebeu imigrantes de todos os tipos. Sou historiadora e estou ciente de tudo o que isso implica, inclusive, da questão racial. Mas isso não me impede de constatar que, de todas as escolhas que os meus pais poderiam ter feito, o Brasil foi a escolha perfeita.

E hoje vou brindar a isso e à memória dos meus pais.

2 comentários sobre “CINQUENTA ANOS NO BRASIL

  1. Sem dúvida, a construção de uma nova escola e uma nova universidade sempre são sementes de futuro. Por mais limitado e pobre que seja nosso atual horizonte de futuro, tua reflexão revela traços de esperança importantes.

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