O Carnaval passou e chegou mais uma vez a Páscoa e com ela o festival de clichês e mesmices de sempre nas redes sociais. Desde os eternos resmungões sobre o preço dos chocolates aos que pensam que suas religiões deveriam dar o padrão do comportamento universal, cada um quer sequestrar ideologicamente o feriado, de acordo com seus próprios interesses. E são todos tão chatos e repetitivos!
Afinal, as celebrações pagãs que acompanham os ciclos naturais da Primavera em todo o Hemisfério Norte são muito mais antigas que qualquer religião surgida nos desertos do Oriente Médio. E resistiram ao impiedoso assédio cristão mantendo o ovo como seu símbolo maior de celebração da fertilidade, incorporando-o em receitas tradicionais como a torta pascoalina italiana e o artesanato em cascas de ovos do Leste Europeu. O acréscimo do chocolate é aquisição mercadológica muito mais recente, mas eu não reclamo, uma vez que ninguém nos obriga a comprar ou a consumir e é de muito mau gosto censurar o que os outros comem.
E, se me for permitido, diria que os cristãos estão no direito deles quando querem colar uma narrativa de morte e sacrifício nesta efeméride, mas extrapolam a civilidade quando buscam anular as outras leituras e impor a sua ao resto da sociedade. Porque se os ritos pagãos celebram a fertilidade da natureza, os ritos judaicos celebram a sobrevivência igualmente mitológica de seu povo no deserto, e todas essas celebrações tem o mesmo direito de existência. E a tolerância aos pensamentos diferentes ou antagônicos deveria ser o principal pilar da civilidade e não esse farisaísmo de vitrine virtual, que transforma uns e outros em juízes da vida alheia.
Da mesma forma que são igualmente aborrecidos aqueles militantes que acreditam que se combate o capitalismo atormentando as crianças para que não comam ovos de chocolate. Três barras do que quer que seja não tem o mesmo sabor de um Ovo de Páscoa porque não tem sua fantasia e seu fascínio, além da fórmula propriamente dita. E qualquer criança ou chocólatra sabe disso.
Então, qual é a sua Páscoa?
Eu celebro a fertilidade dos ritos ancestrais. Não a fertilidade de encher o planeta de gente até a exaustão e a extinção e sim aquela que olha para cada semente como uma promessa. Eu planto minhas ervas e flores e cuido delas e me maravilho a cada broto. E festejo nosso lar planetário que arranca vida até às rachaduras do concreto.
E celebro com ovos de galinha e com ovos de chocolate (se eu ganhar) e presenteio aos que amo com bolos ou biscoitos em que ponho todo o poder de vida que essa mesma natureza me propiciou. E não porque o papel social feminino a que a sociedade me relegou seja esse, mas porque presentear vida e amor é parte de quem eu sou apesar da sociedade, não por causa dela. E porque diante da deterioração evidente de nosso país e do esgarçamento da civilidade no mundo inteiro, a Páscoa milenar deveria ser um lembrete de que o planeta tem seu próprio ritmo natural e de que pode e sobreviverá a todos nós.
Nesse sentido, coma o que desejar, celebre como quiser e permita aos outros a mesma liberdade que você reivindica. Shalom para quem é de Moisés, Paz para quem é de Jesus, Ovos para quem só pensa em chocolate e harmonia e racionalidade para todos nós. E que a vida cumpra mais um ciclo, as sementes germinem, o trigo seja transformado em pão e todos sejam alimentados a contento. 🙂