Há momentos em que é necessário superar a embriaguez dos discursos políticos, partidários, ideológicos e encarar que a sociedade humana é muito mais complexa do que as categorias que formulamos para compreendê-la. Este texto pretende dimensionar algumas questões óbvias, que no calor dos ânimos tão exaltados que enfrentamos, estão sendo escamoteadas e deixadas propositalmente de lado por todos os envolvidos no debate. Peço desculpas, portanto, pela simplicidade e pelo didatismo de algumas informações, este não é um texto de reflexão historiográfica e sim para lembrar o óbvio a quem está fingindo que não vê.
Neste momento existem dois tribunais, alem daqueles previstos pela Constituição, em funcionamento no Brasil: a mídia e o Facebook. Embora os tribunais oficiais e legítimos ainda deixem muito a desejar em termos de Justiça, a interferência massiva de uma mídia partidarizada e de uma rede social que retroalimenta os ódios está cobrando um preço muito caro nestes tristes tempos. Desinformação e linchamento virtual, irracionalidade e violência, tudo contribui para um caldo de cultura perigoso e inaceitável.
Durante toda a minha vida eu tive como um fato de que a, assim denominada, justiça burguesa não é suficiente para os pobres, para os explorados e para os oprimidos. Vivemos em um país em que a polícia militarizada, triste excrescência dos tempos ditatoriais, reina incólume nas periferias cometendo todo tipo de arbitrariedades, amparada por amplos setores de um poder judiciário conservador. E é conservador porque os mecanismos de concursos e nomeações são praticados dentro de um nepotismo rasteiro e obscuro.
Nenhum dos três poderes que compõem a República está acima da lei. Mas, enquanto o legislativo e o executivo estão sempre na berlinda da mídia e da sociedade, o judiciário mantém seus controles internos e não presta contas a ninguém. É o que desejamos em uma sociedade moderna? É claro que não.
Mas vamos pensar com um pouco de discernimento e atentar para alguns detalhes que contam. Como era a Justiça em tempos prévios, quando as repúblicas burguesas não existiam? Como eram os métodos de obtenção de provas? Quem eram os operadores da lei?
Vivemos em uma sociedade com origens eurocêntricas, então olhemos para a Europa do passado. No último quartel do século XII, a igreja de Roma organiza seus tribunais inquisitoriais para perseguir e eliminar os cátaros franceses, mas somente em 1376 Nicolau Emérico (ou Eymerich) sintetiza o primeiro manual do inquisidor. Este manual seria revisto e ampliado em 1578 por Francisco de La Peña.
O manual de Emérico prevê o uso de delações anônimas e torturas físicas para a obtenção de confissões dos suspeitos de heresia. Hoje olhamos para esse texto com náusea e muitos leigos o consideram uma aberração ou uma anomalia histórica. Mas não se trata de uma anomalia, a justiça medieval previa torturas grotescas em vários países europeus, tanto na fase de investigação quanto nas sentenças condenatórias. A pena de morte não era piedosa, ao contrário, era acompanhada de requintes de crueldade e era pública.
Os europeus, e nossos ancestrais latinos não eram exceção, se compraziam em reunir-se nas praças públicas para ver pessoas sendo rasgadas, evisceradas e garroteadas vivas. Seria de se pensar que evoluímos desde então, mas a sede de sangue demonstrada nas redes sociais parece devolver-nos a essas origens vergonhosas. Basta uma série de manipulações midiáticas grosseiras para que nossos contemporâneos se transformem em bestas ignorantes sedentas de tortura e morte.
Hoje, nós que nos consideramos à esquerda do espectro político, podemos considerar a justiça burguesa falha e insuficiente, mas não devemos esquecer o quanto de ganho efetivo as liberdades burguesas significaram na passagem do século XVIII para o XIX. A primeira reivindicação de direitos humanos provém desses tempos, na esteira da Revolução Francesa, e é o momento em que se pensa que todos os homens nascem iguais. De todos, até hoje, esse foi o conceito mais revolucionário e mais importante para a humanidade.
É claro que ainda estamos lutando e muito para tornar realidade essa igualdade teórica, não poderia ser diferente em um mundo que substituiu as castas pelas hierarquias classistas e sexistas. Mas é muito importante que não se perca de vista que liberdade, privacidade e o benefício da dúvida contido na presunção de inocência deveriam ser as bases dessa justiça burguesa na teoria. Quando algum setor social defende que qualquer dessas liberdades seja suprimida, deveríamos reagir imediatamente.
Tribunais inquisitoriais não são legítimos em regimes republicanos, mesmo que tenham apoio popular. Provas obtidas ilegalmente são nulas. Violação dos direitos humanos contidos no artigo quinto da nossa Constituição e nos tratados internacionais de que o Brasil é signatário, não se justificam em hipótese alguma.
E esta é uma discussão que não deveríamos estar realizando em pleno século XXI. O apoio a qualquer medida inquisitorial dentro de um período democrático envergonha profundamente a nossa condição de seres humanos. E não apenas isso, rasga o tecido social expondo a hediondez dos preconceitos que se escondem sob a capa da civilidade tão tristemente aviltada e destruída.
O benefício da dúvida e a presunção de inocência, que constituem uma das bases mais importantes da justiça moderna não podem ser abandonados em função do furor partidário. Em nenhuma instância. Lembro aos leitores que nem mesmo os Estados Unidos, ao implantar o infame Ato Patriótico, tiveram a coragem de manter prisões inquisitoriais em seu território e as relegaram a Guantánamo e a suas bases militares pela Europa e Oriente Médio.
O que estamos assistindo neste triste momento histórico, com os tribunais que violam leis, a mídia que aplaude e um golpe de estado em pleno andamento, é a conspurcação final da República. República que não tivemos efetivamente até a promulgação da Constituição de 1988 e que ainda estamos construindo com muito custo. Setores inteiros da população que jamais tiveram voz pública hoje estão tendo direitos e visibilidade social, e tudo isso pode ser perdido a qualquer momento em uma troca de poder ilegítima.
Não são os militares que nos ameaçam e sim uma turba de civis ensandecidos que está sendo manipulada para apoiar a destruição do estado democrático de direito e uma transição de poder totalmente golpista. Golpes não precisam ser militares para ser ilegítimos, existe um aumento de golpes civis baseados em equívocas manobras judiciais ocorrendo na América Latina. Do mesmo modo que um tribunal não precisa apelar a torturas físicas para ser inquisitorial, basta que elimine os direitos essenciais dos investigados e aceite delações sem provas materiais.
Os argumentos dos setores golpistas da população nem sequer são argumentos e será uma prova dura se as nossas instituições democráticas não conseguirem se contrapor à sanha odienta desses setores. Mas assusta mais ver certos setores da esquerda e de alguns movimentos sociais torcendo pelo pior porque a democracia que temos não é de seu agrado. Isso demonstra a imaturidade e a irresponsabilidade de grupos geracionais que tem como validação da própria existência apenas as redes sociais e mal vivem no mundo real.
Essa pobre e parca justiça burguesa é o que nos separa da barbárie e do arbítrio. Lutar para melhorá-la talvez seja a única opção que restou dentro da racionalidade do processo civilizatório. Para além desta realidade estão os dois extremos, o tribunal inquisitorial e o tribunal revolucionário, ambos igualmente arbitrários e discricionários.
Enquanto comunista, deveria estar defendendo a Revolução, mas acredito que já temos problemas demais para conseguir manter este lastimável estado burguês. Não aprendemos ainda a colocar o primado do ser humano acima do “cidadão de bem” e se isso não acontecer, qualquer revolução deverá ser apenas um banho de sangue para levar ao poder seres humanos igualmente corruptos e apenas com um discurso diferente dos que hoje lá estão. É por isso que nestes tempos sombrios eu vou à rua em defesa da democracia.
Pode parecer ingênuo tanto para os direitistas raivosos quanto para os esquerdistas cínicos e blasés, mas eu quero ter netos um dia, ou sobrinhos-netos, se for o caso, e quero que a sociedade em que vivam seja plural, igualitária e minimamente justa. Quero isso para que meus eventuais descendentes tenham espaço para continuar lutando por um mundo melhor, como eu tenho lutado a vida inteira, dentro do meu parco alcance. Para que cada vez menos pessoas se sintam confortáveis ao aderir a discursos violentos e excludentes.
Esse é o único sonho que me restou nesta altura da vida. Sim, eu sou branca e não sou uma piada. Para bom entendedor…