COSPLAY DE POBRE

Quase ao fim do primeiro semestre de 1987, eu ainda estava tentando me enturmar na UNICAMP. Tendo ingressado ao curso de História naquele ano, após um vestibular massacrante e vindo direta do meio operário, demorei a entender alguns dos códigos de comportamento. E com o tempo acabei tendo uma série de amizades contingentes, que não foi muito além da formatura.

 

Naquele final de semestre, vários alunos do IFCH marcamos um churrasco. No meu meio social de origem, um churrasco era um acontecimento social, não era algo rotineiro (como depois se tornou durante os anos de prosperidade dos governos progressistas), churrascos aconteciam como comemoração a aniversários, conquistas ou mudanças de vida. Por isso eu me “arrumei” colocando uma roupa de sair e até passando um batonzinho (o que não era meu hábito cotidiano).

 

Quando cheguei ao local, uma república, todos estavam com as roupas de sempre, alguns até mais maltrapilhos de que na faculdade, e eu me senti sobrando. Episódios de constrangimento como esse me perseguiram durante todo o primeiro ano, até que eu desencanei de vez e parei de frequentar qualquer evento extraclasse e me concentrei nos estudos pelo resto do curso. Embora houvesse entre os meus colegas pouquíssimas pessoas realmente endinheiradas, éramos de mundos diferentes e a maior parte da “simplicidade” dos estudantes de Humanas de classe média não passava de afetação.

 

Eram pessoas que frequentavam churrascos sem motivo algum e que por isso podiam agir como se não fosse grande coisa. Eram pessoas que “comiam fora” com tal freqüência, que podiam se mover com naturalidade dentro de restaurantes, tratando garçons e funcionários com uma distância condescendente que eu não tenho até hoje. Quando eu entrei na universidade, aos vinte e dois anos de idade, podia contar nos dedos das mãos quantas vezes havia comido em um restaurante de verdade no Brasil.

 

Nesse sentido, as minhas roupas eram simples e puídas no cotidiano porque eu gastava toda a minha bolsa-trabalho em transporte e livros, mas eu tinha minhas roupas de sair, como toda pessoa pobre daqueles tempos. Vários de meus colegas ostentavam simplicidade com roupas gastas de grife, algumas até gastas artificialmente, compradas assim em butique. E eu fui percebendo essas nuances, principalmente entre os militantes do movimento estudantil, que me afastaram da militância por não considerá-la séria o bastante para os meus padrões.

 

Recentemente, minha filha que hoje frequenta a mesma universidade, mas em outro curso, estava relatando uma conversa com um amigo em que eles reclamavam do pessoal que faz “cosplay de pobre” na faculdade. São alunos de classe média alta, que vivem em repúblicas (financiados pelos pais), mas que mesmo assim andam maltrapilhos de grife e reclamando da falta de dinheiro e das privações de ser estudante. Tal e qual muitos dos meus colegas de trinta anos atrás, mas em uma escala mais grandiloqüente.

 

Adorei a expressão “cosplay de pobre”, usada por minha filha e seu amigo, porque expressa exatamente o caráter mascarado dessa prática juvenil. Para quem não está familiarizado com a cultura nerd, cosplay são aquelas fantasias de personagens de animes e quadrinhos, usadas pelos fãs do gênero em eventos e convenções. A ideia de que estudantes de classe média se fantasiam de pobres durante sua estadia nas universidades públicas, constrangendo os que de fato estão nas classes mais populares, combina com esse conceito de cosplay.

 

Para alguém que é pobre de verdade, ou que já o foi e hoje se aguenta na classe média baixa, como é o meu caso, ver esses jovenzinhos brancos de classe média “macaqueando” uma estética que julgam colocá-los no mesmo nível dos “oprimidos que defendem” (e ponha-se muitas aspas) é mais risível que ultrajante. Afinal, uma vez formados, a maioria abandonará essa militância romântica e se transformará no espelho dos próprios pais, exatamente porque não entende que a pobreza original (por não ter-se alternativa) é muito diferente do que essa experiência controlada, financiada por pais benevolentes e coniventes (ou não) com suas fantasias. Mais preocupante é ver os que perseveram na militância (ainda financiados pelos pais) e chegam aos quarenta e cinquenta anos fazendo cosplay de pobre e chamando isso de “princípios”.

 

Isso me traz à lembrança aquela célebre entrevista do Lula (e não vou lembrar se foi para o Pasquim mesmo ou para outro meio de imprensa) em que ele narra o estranhamento entre as operárias feministas e as feministas universitárias no primeiro Encontro de Mulheres promovido pelo PT em seus começos. Segundo o ex-presidente, as operárias foram ao salão e se prepararam, chegando ao local do encontro com suas melhores roupas de domingo, enquanto as universitárias usavam o tradicional look sem depilar, sem maquilar, sem concessões. E, embora Lula tenha considerado a situação hilária à época, talvez hoje ele possa refletir que as feministas universitárias com freqüência denominam como “escravidão aos modelos estéticos”, aquilo que muitas vezes é o sonho de consumo de muita menina pobre. E que esse é um dos motivos porque os extremos sociais das esquerdas não se entendem, pois buscam objetivos diferentes e não se veem representados uns pelos outros.

 

O projeto social progressista, defendido pelo PT, que visava trazer os pobres à modernidade e incluir socialmente através do consumo de bens duráveis, transformando uma franja considerável da população pobre em remediada ou classe média baixa, esbarrou exatamente nessas peculiaridades de comportamento. Esperava-se, penso eu, que as aspirações burguesas dos mais pobres fossem aceitas pela franja social que está “pendurada” entre e médio e o remediado, que a ascensão aos bens e serviços essenciais de alguns e a chegada de outros ao consumo mínimo de turismo e entretenimento não fosse pressentida como uma invasão de território. Já sabemos que isso não aconteceu, de um lado os remediados se sentiram “invadidos” e “rebaixados” ao ter que conviver com os pobres em ascensão e, de outro lado, uma boa parte desses pobres sentiu-se extremamente à vontade para abraçar o conservadorismo e voltar-se contra as políticas sociais que os beneficiaram.

 

E não vou criticar e nem censurar os pobres sem consciência de classe porque a consciência de si (vinculada à classe ou não) é um luxo que vem da politização precoce e da leitura constante, de uma educação completa, enfim. Considerando que a maioria da população, não apenas não tem acesso a uma educação de qualidade, mas também não tem a menor condição de suprir essas carências por si, devido às jornadas estafantes de trabalho, cobrar esse tipo de discernimento seria uma covardia. Mas é exatamente o que muitos militantes universitários, que vivem cosplay de pobres, costumam passar seus dias fazendo, acreditando que os pobres de que dispomos não são bons o suficiente para a Revolução.

 

Um amigo anarquista, que hoje mantenho à distância, nos visitou anos atrás e apontou o dedo acusador à casa própria que nos custou mais de uma década de sacrifícios. Alegando que jamais seria proprietário, parecia esquecer que sem os pais que lhe saiam de fiadores, jamais conseguiria alugar suas moradias e que nós, por sermos de famílias que não herdam, precisávamos de um teto próprio para ter ao menos a garantia de poder envelhecer sem a gigantesca preocupação da moradia. Aposentado do serviço público, esse amigo se sentia mais revolucionário do que nós por causa de uma reles escritura.

 

E são essas e outras que me fazem sentir cada vez mais longe da Revolução, um tanto por causa do povo, que demora a tomar consciência, mas muito mais por certas esquerdas, que ficaram no cosplay e não cresceram como seres humanos. Em parte por isso continuo escrevendo loucamente neste blog, à procura de uma via de acesso para o crescimento das consciências, mesmo que o resultado seja quase nulo. E vou fazendo meus vídeos e vou vivendo a minha Revolução pessoal um dia de cada vez.

6 comentários sobre “COSPLAY DE POBRE

  1. Definição bem precisa, esta do “cosplay de pobre”. No ano passado um estudante desabafou algo bem semelhante, dizendo que existe o “pobre raiz” e o “pobre nutella” (uma espécie de falso pobre). Aqui em Florianópolis, como em outras cidades do Brasil, existe um evento feminista chamado de “marcha das vadias”. É um tradicional evento feminista. Várias mulheres do interior do estado (do meio rural) e trabalhadoras do meio urbano gostariam de participar de atos feministas, mas não com este tom de “vadias”. Entendo que as feministas de classe média, quando escolheram esta denominação, foi para positivar mesmo as mulheres mais desqualificadas socialmente, o que é importante. No entanto, enquanto o evento continuar a ser chamado de “marcha das vadias”, estará de costas para as mulheres das classes populares. Pensando numa relação disto com a tua postagem, há claramente um muro social que impede uma comunicação efetiva entre estes dois mundos. E a barreira é colocada pelos mais remediados.

    • Exatamente 🙂 Eu mesma parei de sair na Marcha das Vadias aqui de Campinas porque as meninas mais novas meio que me isolavam sabe lá o porquê. Talvez porque meu marido me deixava lá e ia buscar (eu tenho artrose no joelho esquerdo e as marchas são cansativas) e isso parecia bem pouco feminista para elas. 🙂 A gente precisa mostrar que esse pessoal militante também anda meio curto de consciência de si e do outro. Senão não dá para organizar nada. 😦

  2. Querida Annagicelle, bom dia!

    Estou sempre acompanhando suas publicações; suas histórias vão fundo no meu coração. Eu me identifico com vc tanto pela postura política quanto pelas experiências de vida narradas. Por exemplo, o Cosplay de Pobre mais parece que se trata da minha história…com alguns agravantes.

    Eu me formei em 1968, em Pedagogia, numa Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, de cidade do interior de Minas. A mais velha das mulheres (2ª no conjunto total) de dez irmãos. De origem muito pobre; até ingressar na faculdade minha mãe só havia tido uma lavadeira para ajudá-la. Fazia de tudo: cozinhar, passar, arrumar casa, costurar, etc etc …e ter filhos (dez são os sobreviventes, teve três prematuros, natimortos). Nós, as mulheres éramos a mão de obra auxiliar doméstica.

    Mas, papai, militar (PMMG), pelo estudo e ajuda de familiares que o criaram após a morte de seus pais, foi subindo na carreira, tornou-se oficial e, em 1964, foi transferido para esta cidade onde estudei, para comandar o único batalhão existente no Triangulo Mineiro à época. Fui “arrastada”, pois fazia o Curso Normal em BH, onde morávamos, militava no movimento estudantil e me preparava para o vestibular de Belas Artes…justamente porque, não sei como me enveredava por uma postura mais progressista no seio desta família, meu pai não me deixou morando com parentes na capital para estudar. Foi pior, na Faculdade isolada que cursei, de freiras dominicanas, eu me aprofundei num novo evangelho e fui participar da pastoral universitária. Daí pra frente não mais parei, tornando-me um dos membros fundadores da Comissão Diocesana de Direitos Humanos!

    Então, minha vida “universitária” foi do jeitinho que vc descreveu com o acréscimo de uma discriminação agressiva e violenta por ser filha de “milico”, de “gorila”…acreditavam que ali estava como “dedo duro”, sem imaginar que, em casa, meu pai também me “isolava” porque eu era “comunista”! E até hj, entre os irmãos, é assim. Entende pq chorei quando li o Cosplay de pobre? Por que gosto de ler seus escritos?

    Eu tb fui teimosamente adiante na vida: trabalhei na educação pública estadual, ajudei, de certa forma, o surgimento do SIND UTE em Minas, cheguei ao magistério na UFU… já me aposentei, mas como nos meus tempos de profissão a pós-graduação era incipiente, não vivi esta fase de um governo progressista com investimento ampliado em educação; ingressei no ensino superior com, apenas, uma Especialização…era muito comum na época, de modo especial no interior. Cheguei a começar um mestrado, mas com filhos para criar sozinha e sem bolsa, tive que deixá-lo.

    Hj, completo 72 anos no mês que vem e aposentada, graças à “interiorização das IFES e democratização do ingresso e da luta pela permanência”, morando agora no sul de Minas, defendi em março 2018 minha dissertação de mestrado! Amo estudar e isso era uma frustração para mim… Mas, já voltei para a Universidade: estou fazendo um Curso Livre sobre o Golpe de 2016. Nossa discussão desta última segunda feira teve como um dos pontos fortes a questão da tomada de consciência de classe, indispensável à Revolução… vou repassar agora seu texto para meus jovens colegas!

    Tomei seu tempo, mas queria dizer a vc: continue compartilhando histórias! Precisamos delas!

    Grande abraço, Abigail Emília

    Enviado do Email para Windows 10

    ________________________________ De: compartilhandohistorias Enviado: Saturday, June 2, 2018 2:40:22 PM Para: abigail_bracarense@hotmail.com Assunto: [New post] COSPLAY DE POBRE

    annagicelle posted: “Quase ao fim do primeiro semestre de 1987, eu ainda estava tentando me enturmar na UNICAMP. Tendo ingressado ao curso de História naquele ano, após um vestibular massacrante e vindo direta do meio operário, demorei a entender alguns dos códigos de comport”

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