CACHORRÊS (um short cut doméstico em tempos de quarentena)

Ontem, faltando dois minutos para as onze da noite, o telefone tocou. Em tempos de pandemia, meu coração deu um “estalo” e eu torci para ser um daqueles telefonemas de cobrança ridículos, que sempre são sobre pessoas que nem conhecemos. Com tantos parentes em grupos de risco…

 

Antes que eu pudesse levantar, o Duda atendeu. E em poucos segundos, o ouvimos berrando algo como “em que cadeia você está seu filho da puta, vai fazer seus corre na puta que pariu” (confesso que era bem pior). E ele desligou o telefone furioso.

 

Era um daqueles telefonemas em que você diz “alô” e uma voz aflita diz “papai, papai” e segue-se uma história de falso sequestro para extorquir os incautos. Eu mesma já recebi mais de um e normalmente mando passear e desligo também, afinal eu não tenho filhos homens e conheço a voz dos meus sobrinhos o suficiente para identificar a fraude. O crime organizado, parece, permanece ativo em plena quarentena.

 

O Duda, que é uma dessas pessoas práticas, tentou identificar o número que ligou (como se fizesse diferença), mas tudo o que apareceu foi um conjunto de zeros. Provavelmente, o celular no presídio estava usando uma central clandestina para selecionar um número aleatório e encaminhar o telefonema e eu tentei explicar a ele como isso funciona. E como os presos adequam a interpelação inicial ao tom de voz e ao gênero de quem atende (“tecnologia de ponta”).

 

E foi aí que o Duda descontraiu e comentou “quer dizer que se a Athena atender, o cara vai latir?”. E começamos a rir sem parar com ele fazendo uma micagem de como seria o diálogo de latidos, emulando os tons de desespero do preso e de estranheza de quem atende tais telefonemas. A Débora, que saía do banho, parou na sala e aderiu à gargalhada.

 

Entretanto, a Athena (que estava dormitando em sua caminha) veio correndo totalmente “emputecida” latindo e tomando satisfações. Eu, que nessa altura já estava no pique da piada, mandei “tá vendo o que dá falar cachorrês sem saber, você deve ter ofendido toda a família dela, agora se vira p’ra pedir desculpas”. E, no meio da risada geral, a Athena ainda deu bronca toda séria, mas se acalmou.

 

Enquanto o Duda escovava os dentes, Débora e eu morríamos de rir com toda a sequência. Começamos a imaginar como seria se fosse um sketch da TV Quase, com o Renan contando a história e o Rogerinho dando a moral. No final, todos combinamos que seria necessário registrar por escrito para referência futura.

 

Eu nem imagino o que vai sobrar das nossas vidas quando os dias de covid-19 tiverem passado. Na maior parte do tempo prefiro nem imaginar, afinal, as cenas que nos chegam de outros países são tão dantescas que podem paralisar do mais destemido até o mais indiferente. Prefiro esperar do que sofrer por antecipação.

 

Por isso registro este pequeno momento de Humanidade, para que sempre nos lembremos de quem somos, não importa o que aconteça.

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