O HISTORIADOR E O ZÉ DA ESQUINA

Estive pensando neste texto por vários dias. Calhou de acordar hoje e descobrir que foi criada uma efeméride dizendo que é nosso dia. Então, talvez, o que segue aqui ajude um pouco na reflexão sobre o nosso entorno social.

 

Para ser historiador é preciso estudar muito. Dominar técnicas de pesquisa de vários tipos, não basta saber paleografia para decifrar a escrita documental ou línguas mortas para entender documentos antigos, é necessário também um razoável nível de erudição sobre a época estudada para conseguir “ler” suas fontes de uma maneira contextualizada, sem cometer anacronismos. E é claro que um domínio minimamente sofisticado da produção teórica requer a leitura crítica de algumas centenas de obras consideradas primordiais.

 

História não é um curso para quem tem preguiça, para quem não gosta de ler ou para quem tem uma visão de mundo excludente e limitada. Se o historiador não tem a capacidade de refletir criticamente sobre a época que estuda, então ele vai apenas reproduzir repertórios de datas e fatos ou as versões oficialmente aceitas, que interessam aos detentores do poder e da informação. Se o pesquisador ou o professor não tem o treino para desconstruir e decompor os elementos dos discursos sociais e documentais, ele se torna um mero reprodutor de sensos comuns sem noção ou reflexão.

 

E vou repetir o que já disse dúzias de vezes dos vídeos e materiais do Cantinho da História, criticar não significa falar mal ou desancar. Uma leitura crítica implica em saber identificar os pressupostos teóricos do autor do texto, compreendendo assim porque cada autor “escreve como escreve” e conseguir dialogar com eles dentro das linhagens teóricas e historiográficas. Esse tipo de leitura implica em conseguir decompor o texto em suas partes essenciais e entender a mecânica de construção da narrativa.

 

Cabe ao historiador desmascarar os discursos dos poderosos, contrastando-os com a realidade social de suas épocas. Cabe ao historiador denunciar crimes, injustiças e genocídios “para que nunca se esqueça, para que nunca mais aconteça”. Cabe ao historiador fixar na trama do conhecimento as narrativas das épocas que já se foram para garantir a memória e a identidade de todos nós.

 

Mas também cabe ao historiador mergulhar em séries intermináveis de documentos e produzir tabelas e mais tabelas analíticas sobre demografia, clima, alimentação ou qualquer que seja o tema da pesquisa. Cabe ao historiador devassar centenas de processos judiciais, dominando a linguagem notarial e processual, para entender as estruturas da ordem e da punição na sociedade. Cabe ao historiador adquirir corpus de conhecimentos complexos quando sua disciplina entrecruza com o Direito, a Medicina, a Geografia ou a Filosofia.

 

E toda essa pesquisa deve ser vertida em uma narrativa que obedece a normas técnicas bem estritas. Deve dialogar com a corrente historiográfica em que se insere e deve apresentar seus documentos, tabelas e instrumentos de pesquisas dentro dos modelos academicamente aceitos. E deve estar sempre pronto para a refutação e crítica de seus pares.

 

Por isso textos acadêmicos são tão chatos? – perguntará aquele aluno rebelde e você lhe responderá que sua leitura só lhe parece chata porque ele não tem o treino e o conhecimento necessário para lê-los de maneira adequada. E, se você tiver sorte, vai conseguir passar a esse aluno uma série de ferramentas para que aprenda a ler adequadamente e não ande por aí dizendo besteiras. Mas, se não conseguir, você terá que se defrontar com mais um obscurantista defensor de autores irrelevantes só porque são de fácil leitura e que odeia os intelectuais porque não consegue acompanhar seu raciocínio.

 

E estamos em uma sociedade cheia deles. Autores mercenários que cometem desonestidades intelectuais medonhas apenas para vender livros, professores titulados que se esgoelam como energúmenos em noticiários popularescos e palestrantes que ganham fortunas para oferecer platitudes embrulhadas em verbosidades eruditas a plateias de basbaques e novos ricos. E o público em geral não tem o treino e nem a capacidade para distinguir essa História para consumo e descarte, dos trabalhos acadêmicos sérios que consomem a vida dos pesquisadores.

 

Hoje o historiador não enfrenta apenas a crítica abalizada de seus pares, enfrenta também o deboche de humoristas escatológicos e a opinião do Zé da Esquina. As maiores barbaridades são proferidas por um vulgo ignorante, mal informado e prepotente e somos obrigados a viver desfazendo as confusões causadas por esse tipo de desinformação. E, no meio dessas refregas, o Zé da Esquina tem tanta autoridade perante a sociedade quanto nós que somos especialistas.

 

Em um mundo cheio de “minas lacradoras” e gentes de “opiniões” fortes, a dura labor de aquisição de conhecimento é o que menos importa. Ganha os “debates” quem berra mais alto, quem abandona a civilidade e “cala” os outros. Perde quem procura racionalidade em meio à barbárie.

 

Ser especialista nos dias atuais virou crime. Muitas pessoas acreditam que o conhecimento é um fator de prepotência e que qualquer opinião leiga tirada do próprio traseiro tem o mesmo peso que o trabalho de pesquisa de décadas. Do mesmo modo, esses apologistas do pseudoconhecimento andam por aí incensado autores irrelevantes de décadas e décadas atrás para apoiar as falácias que defendem. E cabe a nós resistir e manter a integridade do “fazer” historiográfico.

 

Pirralhos arrogantes, que são incapazes de aceitar o contraditório, erguem a voz e colocam o dedo na cara de pesquisadores sérios e ainda nos chamam de agressivos quando desconstruímos suas certezas banais e demonstramos o caráter raso de seus conhecimentos de almanaque. A disputa por uma versão dominante na arena da divulgação da História nos arranca do dinamismo dos debates acadêmicos para mergulhar nesse ambiente de briga de rua das redes sociais. E, para vergonha suprema da humanidade, hoje no Brasil se chega às vias de fato discutindo a matriz ideológica do nazismo porque uma súcia de retardados anda propalando que Hitler era de esquerda.

 

E mesmo assim estamos aqui e hoje, homenageando Joaquim Nabuco, festeja-se nosso dia. Joaquim Nabuco que foi um erudito e um ativista abolicionista. Em uma sociedade que considera o ativismo dos professores um crime de lesa pátria. Certamente ironia pouca é bobagem.

 

Estamos aqui e não seremos calados. Nem por leis de mordaça, nem pelo desmonte das universidades e nem pela ignorância e agressões do público. Estamos aqui para ficar e para lutar por nossos conhecimentos e o direito à nossa produção acadêmica e social dentro dos cânones da ética e da seriedade que o ofício exige.

 

Legislações ultrapositivistas, destinadas a despojar a escola e a academia de seu poder libertador não podem silenciar mais de um século de aprimoramento teórico e metodológico. A pretensa neutralidade exigida e defendida por quem não tem compromisso algum com o conhecimento (e procura somente uma profissão em que se encostar) não é apenas ingênua, é vergonhosa. Que pensariam disso Marc Bloch, Lucien Fébvre, E. P. Thompson, Eric J. Hobsbawm e o próprio Karl Marx?

 

Ser historiador e professor hoje é resistir. É clamar no deserto enquanto se procura não perder a sanidade diante de um sistema que nos apequena, aprisionando alguns na produtividade acadêmica e silenciando outros tantos em um mercado de trabalho taylorizado. E é por isso que eu digo NÃO às mordaças, às ingerências e ao senso comum acéfalo de uma sociedade que prefere o consumo e o espetáculo da força e da violência, em detrimento do debate e do conhecimento.

 

Somos o que somos, para bem ou para mal, e vamos continuar aqui por muito tempo. Acostumem-se.

4 comentários sobre “O HISTORIADOR E O ZÉ DA ESQUINA

  1. além das barbaridades proferidas contra temas estudados pelos historiadores como por exemplo essa aberração de afirmar que o nazismo e de esquerda temos agora a ideia de que a terra e plana. fujam para as montanhas. parabéns pelo texto professora.

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